A Quaresma é um tempo de penitência e de atenta escuta e acolhida da Palavra de Deus, cujo objetivo é nos orientar e nos educar na fé.
Cardeal Odilo Pedro Scherer – Arcebispo metropolitano de São Paulo
O tempo quaresmal vai nos propondo, passo a passo, as questões centrais de nossa fé e da vida cristã, ajudando-nos a fazer uma avaliação sobre a vivência das promessas batismais, que renovaremos na Páscoa. Assim compreendemos também a referência frequente ao Batismo durante este tempo.
Na Oração do Dia do 2º Domingo da Quaresma, fizemos este pedido: “Ó Deus, que nos mandastes ouvir vosso Filho amado, alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão de vossa glória”. A oração faz referência ao Evangelho da transfiguração de Jesus, lido nesse mesmo Domingo. Da nuvem, que envolveu Jesus e os apóstolos no alto da montanha, ouve-se a voz de Deus Pai a confirmar que Jesus é o Filho amado, que deve ser escutado.
A Quaresma é um tempo de penitência e de atenta escuta e acolhida da Palavra de Deus, cujo objetivo é nos orientar e nos educar na fé. A penitência quaresmal não tem apenas o objetivo de “mortificar os nossos excessos mundanos e carnais”, mas de nos levar a uma conversão mais profunda e a uma sintonia maior com Deus. E isso acontece mediante a escuta e acolhida da Palavra de Deus, que nos ajuda a “purificar o olhar de nossa fé” e a confiar mais e nos alegrar nas promessas de Deus.
Aqui, de fato, estão em jogo as perguntas que dizem respeito à nossa fé cristã, imenso dom que nos foi dado por Deus como graça no Batismo, juntamente com a esperança e a caridade. A fé batismal nos capacita a invocarmos Deus como Pai e a acolhermos seu amor infinito por nós. Pela fé, aderimos a Deus e lhe entregamos nossa vida, para que reine sobre nós. E acolhemos, como dom de sua graça, também suas promessas, como meta suprema de nossa vida neste mundo.
A fé, porém, nos é dada como um dom e capacidade, que precisam se desenvolver e crescer mediante a nossa correspondência e participação. Lembremos as passagens do Evangelho, que nos falam do Reino de Deus como se fosse uma semente: ela tem a vida em si mesma, mas precisa encontrar terreno bom para desabrochar, crescer e produzir fruto. Jesus fala dos frutos que Deus espera de nós em diversas passagens, como na parábola dos talentos, da figueira estéril e da videira. Nossa fé precisa crescer e se tornar robusta, para produzir os frutos da vida coerente com o Evangelho. A fé floresce e frutifica na justiça, na retidão, na caridade, nas obras de misericórdia e nas virtudes humanas e cristãs.
A “purificação do olhar de nossa fé” requer que superemos algumas formas desviadas e pouco “puras” de crer e de viver a religiosidade: uma fé misturada com superstição e magia, que não é referida acima de tudo ao próprio Deus, mas a nós mesmos e pretende sempre a própria satisfação, em vez da glória a Deus e da conformidade da vida com sua vontade e seus mandamentos, precisa ser purificada e educada na Palavra de Deus. Também uma fé e religiosidade, sempre interesseiras, que pretendem mandar em Deus e impor a Deus as próprias vontades, desejos e até interesses e vaidades, sem a sincera obediência a Deus, precisa ser purificada e bem orientada.
Nossa fé também precisa se tornar capaz de superar com serena confiança as inevitáveis provas que devemos enfrentar na vida. Quantas vezes acontece que, diante da primeira dificuldade na vida cristã, ou do insucesso de nossas vontades expressadas em nossas orações, ou no contato com a Igreja, já vem a decepção e o desânimo e se abandona a fé e a religião. A fé é amadurecida mais nas provações do que nos consolos da vida. Abraão, o “pai da fé”, foi duramente provado, mas superou a prova, permanecendo fiel e obediente a Deus. Maria e José fizeram um difícil caminho de crescimento e amadurecimento de sua fé. Muitos santos experimentaram longos períodos de “noite escura” no caminho da fé, mas perseveraram e ficaram fiéis a Deus. Depois, experimentaram grande bênção e consolação.
Ninguém pode afirmar que não precisa crescer na fé, para alcançar uma maturidade maior e uma serena firmeza na fé, capaz de resistir às mais difíceis provas, que podem se apresentar na vida. A primeira coisa a fazer é colocar Deus como centro de referência da fé, e não a nós mesmos. Trata-se de cumprir o primeiro mandamento da lei de Deus: crer em Deus e não ter outros “deuses” fora dele. Amar a Deus sobre todas as coisas, e não apenas amar um pouquinho… Todos nós precisamos pedir, com os discípulos: “Senhor, aumenta a nossa fé!”
Fonte: O São Paulo